História
São 9h da matina, mas o dia já vai longo para Gilberto Branco. “Muitas vezes acordo com o nascer do sol para vir para cá”, diz, apoiado na sachola e resmungando com os caracóis que lhe querem comer os pimentos e com o bicho do feijão a trepar pelo pé miúdo. “Olha os malucos a subirem já por aqui! O que vale é que as formigas tratam deles”. A energia dos seus 71 anos é igual à de um catraio, até porque se não andar por ali, a cavar e a semear, a cabeça não anda bem. “Se não fosse a minha hortinha, dava em maluco.”
O “por ali” a que se refere Gilberto é a Horta da Oliveira, a maior horta municipal do Porto, vizinha do Parque da Alameda de Cartes e do Complexo Desportivo de Campanhã. Nascida em 2017, no âmbito do projeto Horta à Porta, da Câmara do Porto em parceria com a Lipor, a horta está dividida em 99 talhões, distribuídos pelos fregueses que requisitaram um cantinho para as suas plantações. Há algumas regras a cumprir: são proibidas as monoculturas e a agricultura praticada deve ser em regime biológico. Daí cada talhão ter o seu respetivo contentor de compostagem, para renovar e nutrir o terreno.
“Isto é o que faz a terra fofinha”, diz Gilberto, mexendo a sua compostagem cheia de couves, cascas de ovos, palha e “pastéis de Belém” do Carmo. “Não sabe o que é?”, pergunta malandro, para logo responder, “é o estrume de cavalo do quartel”, e solta uma gargalhada no ar que se mistura com o som do rádio de um vizinho seu. Ouve-se Playback de Carlos Paião, as pegas a cantar, a sinfonia de uma rotina que se repete e que lembra os tempos de uma Campanhã rural, em que se levava a imagem de Nossa Senhora de Campanhã em procissão até ao centro da cidade, para pedir colheitas férteis.
Jorge Ricardo Pinto, em “O Porto Oriental no final do século XIX: Um retrato urbano”, retrata a Campanhã de antanho como uma freguesia de imensas riquezas naturais, que se converteu nos séculos finais da Idade Média numa importante reserva agrícola do burgo, cuja principal função é abastecer a cidade de géneros alimentares básicos. A população era constituída essencialmente por camponeses, que plantavam frutas, trigo, cevada, centeio e milho. Havia também pescadores, concentrados nas margens do Douro, e moleiros, que detinham 76 rodas de moinho junto dos cursos de água.
O cenário só viria a sofrer alterações significantes no século XIX, com a revolução industrial e a implementação de várias fábricas em Campanhã. Mas a sua marca de ruralidade persiste até aos dias de hoje, quer seja pelas pessoas que, como Gilberto, cultivam as suas alfaces de Gondomar, cenouras, repolhos e outros bens sazonais para consumo próprio, quer pela atividade de quintas pedagógicas como a Associação Movimento Terra Solta, aberta aos sábados para a população conhecer as práticas biodinâmicas que por ali se fazem, ou pelo culto a Nossa Senhora de Campanhã, a quem são dedicadas festas entre o final de agosto e o início de setembro. Pelo sim, pelo não, mais vale rezar-lhe uma oração todos os anos, não vá o mafarrico queimar as colheitas e deixar Gilberto Branco maluco de todo.

